Reparando uma injustiça: a crença na reencarnação é injustamente associada à Platão, por 2400 anos!
“Os mitos platônicos sobre os destinos da alma no além-morte não são produtos dogmáticos de nenhum sincretismo histórico religioso. Interpretá-los assim seria menosprezar completamente a capacidade poética criadora de Platão, que neles atinge um de seus pontos culminantes”. (Werner Jaeger, Paidéia, Ed. Martins Fontes, p. 687)
Platão
menciona o mito da transmigração das almas, sobretudo, em seus chamados
mitos escatológicos e também noutros lugares citados de passagem:
Fedro. (246-254); Rep. (614-621); Górgias (523E-527); Fédon (106E-115A);
Fédon (70C e ss); Menon (81); Crátilo (400); Timeu (41D ss., 90-91);
Leis (870D / E, 872E, 881A, 904 e ss.
Entretanto, nestes exemplos, Platão nunca apresenta a transmigração como
doutrina sua. Nem mesmo como uma doutrina ou dogma. Normalmente, o
personagem de Sócrates , no diálogo, convida seus interlocutores a ouvir
um um "conto", "mito", ou uma "tradição", atribuindo sua origem a
outros. (Podemos também notar que jamais outras fontes diretas de
informação sobre Sócrates, seja Xenofontes ou Aristófanes, tenha
afirmado que Sócrates tenha ensinado a reencarnação.)
Freqüentemente sugere-se que Platão a adotou dos egípcios ou até mesmo
dos pitagóricos.
Porém, no Egito, a crença na reencarnação não era uma
crença normativa, ou padrão. Numerosas inscrições e textos funerários
implicam o contrário. Quanto a Pitágoras, embora seja comumente dito
que ensinava a transmigração, isto não é totalmente certo. As
declarações específicas sobre reencarnação atribuídas a ele são
historicamente questionáveis e lendárias; Os próprios relatos sobre a
vida de Pitágoras são na maior parte lendárias. Muitas destas
declarações atribuídas a ele são de cunho irônico e humorístico (por
exemplo, a observação de Xenófanes, de que “Pitágoras reconheceu a alma
de um amigo num cachorrinho”. Tais declarações possuem sentido
não-literal. A atribuição da crença na reencarnação à Pitágoras pode ter
derivado de uma má interpretação de seu vegetarianismo. Quanto aos
órficos temos pouquíssimo conhecimento sobre o assunto. Novamente seus
mitos não se destinavam a ser tomado literalmente. São raras as fontes
antigas sobre o pitagorismo e o orfismo. Existem poucas informações
concretas.
Além disso, podemos ainda mencionar que embora Aristóteles se opusesse à
idéia de reencarnação em De Anima (1,3 407b), ele jamais associa a
crença à Platão. Tivesse Platão acreditado na reencarnação, Aristóteles,
provavelmente saberia e, por conseguinte, comentaria.
Entre os neoplatônicos, Proclo (comm. in Tim.,329 d-e) observa que
cumpre entender tais passagens em sentido figurado. Afirmando que “as
almas adotam a natureza e o caráter dos animais, mas não os seus
corpos”. Sara Bril confirma a exegese de Proclo: "Sócrates usa
animalidade no contexto da transmigração como um meio de fornecer um
vocabulário para a virtude ou vício; uma variedade de seres vivos está
assim ligada a uma variedade de condições psíquicas." (Sara Brill, A
Geografia da Finitude. Philosophical Quarterly Internacional, Março,
2009). Neste mesmo sentido, para Paul Friedlander, "O errar, a ânsia
pelo corpóreo, se encontra no Além-túmulo igualmente eternizado". (Paul
Friedlander, Verdad del ser y realidad de vida, ed. Tecnos, p.180).
Paul O. Kristeller afirma que "sempre que Platão parecer falar de uma
transmigração da alma humana a outras espécies naturais, devemos
compreender as diferentes formas e hábitos da vida humana.(Cf. Paul
O.Kristeller, The Philosophy of Marsilio Ficino, Nueva York, 1943,
p.118).
Os Padres da Igreja, em geral, embora tenham recebido positivamente a
filosofia de Platão, tomaram seus comentários sobre a reencarnação
literalmente. Exemplos incluem os seguintes:
Lactâncio (Divino Institutos, 3.19)
Santo Irineu (Contra as Heresias 2,33)
S. Justino Mártir (Diálogo com Trifão 3,4-3,6)
Tertuliano (Sobre a Alma 1,28 ss.)
Orígenes (Contra Celso 1,13, 1,32, 4,17 e 4,83)
Eusébio (Preparação para o Evangelho 13,16 ss.)
São Jerônimo (Epístola aos Avitus 7)
São João Crisóstomo (Homilias sobre João 2:3)
Alguns autores patrísticos puderam ter tido motivos inconscientes para
denegrir filosofia pagã, incluindo a filosofia de Platão. Entre os
apologistas os exageros era comuns. Além disso, associando Platão à
reencarnação ajudava a desacreditar as heresias de influência platônica
como o Gnosticismo.
Entretanto, alguns Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria dedica
vários capítulos do Stromata (Strom V, 58, 3-6) para explicar o uso da
alegoria nos escritores pagãos, dentre eles, Platão). Clemente faz uma
referência especifica aos mitos platônicos que descrevem a reencarnação
tomando-os como alegóricos.
Durante o Renascimento italiano, o Cardeal Bessarion (fl. 1460)
defendeu a interpretação alegórica dos mitos platônicos. Marsilio
Ficino nega a crença platônica na reencarnação
"várias dezenas de vezes". Ficino dedicou uma grande parte do Capítulo
17 da Teologia platônica para a questão (Hankins, 2005). De acordo com
Ficino (Platonic Theology, 1482) nem mesma a Antiga Academia (385 aC -. C
260 aC), nem a Nova Academia,a mais cética (c. 260 aC -. C 83 aC) as
referências de Platão à reencarnação foram tomadas literalmente.
Atualmente, muitos estudiosos modernos admitem que as
referências de Platão à reencarnação devem ser tomadas alegoricamente
(por exemplo, Stephen Halliwell, 2007).
No tempo de Platão, eram comuns,
se não de rotina, usar como meios de apresentação de idéias
filosóficas, a alegoria, o mito e a poesia. Heráclito, Parmênides,
Empédocles expressam-se em aforismos oraculares e versos com
significados velados. Assim, também, idéias psicológicas são expressas
pelos trágicos. Lembre-se que Platão inicialmente tentou escrever poesia
e da tragédia (Diógenes Laércio, 3,6, 3,8).
Julia Annas diz que tais mitos devem ser tomados em sentido figurado.
Observa ainda que a crença na reencarnação não era comumente aceite
entre os contemporâneos de Platão. Alerta ainda que, devemos lembrar que
Platão evitava sempre apresentar suas idéias como dogmas, e que em
tratados, ele emprega várias estratégias de argumentação, sendo indireto
muitas vezes. (Cf. Julia Annas, Plato, a brief insight, Sterling
Publishing Co, 2003, p.122). H.S. Thayer, HS, descarta explicitamente o
literalismo nos mitos platônicos. (cf. History of Philosophy Quarterly
Vol. 5, No. 4, Plato Issue (Oct., 1988), pp. 369-384. University of
Illinois Press)
A sugestão de que Platão ensinou e escreveu uma doutrina literal da
reencarnação é contrária ao seu modus operandi. Em Fedro 275C-278b
Platão revela a sua atitude reticente sobre a escrita de questões
importantes. Nos “auto-testemunhos” do Fedro e da Carta VII, as
deficiências que Platão atribui ao escrito que o impedem de comunicar as
verdades supremas de modo adequado. Para Platão: 1. O escrito não
aumenta a sabedoria e nem a memória dos homens. O escrito é inútil, pois
a maioria dos leitores compreende esses ensinamentos apenas no nível da
opinião, permanecendo na aparência da compreensão da verdade. 2. O
escrito não consegue defender-se sem o auxílio do seu autor. O escrito
assemelha-se às criaturas impressas na pintura, ambos parecem vivos,
dinâmicos, mas na realidade são estáticos e sem vida, não respondem a
nenhuma objeção ou crítica. 3. O escrito é mimesis, imitatio do
discurso realizado na dimensão oral. O escrito é inferior ao discurso
realizado na oralidade porque não passa de uma cópia do modelo
originário. 4. O escrito envolve grande parte de “jogo”, enquanto a
oralidade implica “seriedade”. Fixar a verdade no escrito é plantá-la em
um ambiente artificial, com demasiado calor e adubo crescerá rápido,
causando a aparência do seu entendimento, porém, por mais belo que seja,
morre antes de produzir frutos. 5. A clareza e a completude pertencem
somente à oralidade. 6. O filósofo confia as “coisas de maior valor”
somente à oralidade e não ao escrito.
Além disso, a doutrina da reencarnação seria contrária ao princípio da
ignorância socrática. Diógenes Laércio afirma, "Sobre questões duvidosas
Platão deixava suspenso seu julgamento" (Vidas, 3,23).
Platão reconhecia a importância de combinar diferentes estilos
expositivos, adequados às diferentes naturezas de pessoas ou partes da
alma (Fedro 277B / C) ; O mito é uma forma de exposição destinado para
as partes não-racionais da alma - ou seja, não devem ser tomadas
literalmente. Para outros mitos platônicos o significado alegórico é
rotineiramente assumido. Por exemplo: O mito do andrógino no Banquete
189 e ss.; O mito da cigarra no Fédon, 259, no qual os cantores são
supostamente transformados em cigarras. Portanto, a mudança de seres
humanos em formigas, abelhas, vespas ou (Fédon 82) também são
alegóricos. Pois de outro modo, como se poderia alcançar mérito ou
demérito no caso de uma alma racional migrar para o corpo de um animal
irracional? Como poderia uma alma ganhar o direito de um novo corpo
humano?
Declarações de Platão sobre a reencarnação podem ser plausivelmente
interpretadas como expressão de verdades existenciais e psicológicas.
No Fedro, o mito da carruagem é facilmente interpretável como alegoria
para a ascensão contemplativa (ver Uebersax, 2006a). Voegelin afirma que
os mitos de Platão tornam-se uma armadilhas para o intérprete se
tomados literalmente. Para chegar ao significado, diz Voegelin, tem de
se reduzir o mito à sua base de experiência. Os símbolos explícitos do
mito são processos da alma. (Cf. Eric Voegelin, Ordem e História: Platão e Aristóteles. Ed. Loyola)
O mito de Er, por exemplo, é uma clara alegoria existencial. Ademais,
devemos notar que na visão de psicólogos modernos - por exemplo, Carl
Jung, Edward Edinger, Erich Neumann, e Joseph Campbell - que o mito
escatológico sempre carrega um profundo significado psicológico.
Stephen Haliweel propõe a leitura do mito platônico da reencarnação como
uma alegoria da vida da alma neste mundo. O motivo de uma escolha de
vida pré-natal pode ser interpretado como um emblema de nossas escolhas.
Cada ação, poderíamos assim dizer, traz consigo a sua "vida após a
morte." Cada escolha nos torna o que somos; Platão sugere que a salvação
da alma, em todo e qualquer ponto de sua existência – está vinculada as
escolhas pessoais que podem determinar seu destino póstumo." (Cf.
Stephen Halliweel, The Life-and-Death Journey of the Soul: Interpreting
the Myth of Er, The Cambridge Companion to Plato's Republic)
Certas passagens de Platão supostamente relacionadas à reencarnação
contêm muitos detalhes estranhos, implausíveis, e inconsistentes, o que
implica que não foram feitos para serem literalmente. Platão também
deixa de considerar as dificuldades técnicas da teoria: Por que Orfeu
optou por se tornar um cisne e Agamenon uma águia (Rep 10,620)? Isso
exige uma suspensão da descrença radical, uma característica da ficção.
Em Fédon 82A / B é-nos dito que aqueles que praticam as virtudes
sociais e cívicas podem se tornar não apenas os homens de novo, mas
também abelhas, formigas e vespas. Isso não faz o menor sentido - como
se tornar-se um inseto social fosse alguma recompensa. Podemos talvez
aqui recordar as palavras de Platão em Fedro 277E sobre a escrita
lúdica.
Por fim, a crença na reencarnação não é um elemento absolutamente
necessário à doutrina da reminiscência (anamnese). Platão acreditava que
as pessoas possuem um conhecimento latente das Formas, e que estas
podem ser lembradas. Porém, ele facilmente poderia ter pensado, que (a)
as almas poderiam, hipoteticamente, terem recebido tal conhecimento no
instante em que são criadas e colocadas nos corpos; (b) o conhecimento
poderia irradiar de Deus e iluminar a memória, mas apenas ser
reconhecido por uma alma purificada (cf. Santo Agostinho).
A anamnese em Mênon e Fédon não requer encarnações anteriores, mas
apenas a pré-existência da alma que poderia existir como possibilidade
na plano das Ideias (ou em sentido cristão, como possibilidade na Mente
divina, antes de serem criadas no tempo).
Adversus Haereses
Bibliografia:
Artigos:
UEBERSAX, John S. Did Plato Believe in Reincarnation?
HALLIWEEL, Stephen. The Life-and-Death Journey of the Soul: Interpreting
the Myth of Er, The Cambridge Companion to Plato's Republic.
Livros:
ANNAS, Julia. Introduction to An Introduction to Plato's Republic, pp.
1-15. Oxford, Eng.: Clarendon Press, 1981.
____________. Plato, a brief insight, Sterling Publishing Co, 2003.
BRILL,Sara. A Geografia da Finitude. Philosophical Quarterly
Internacional, Março, 2009.
FRIEDLANDER, Paul. Verdad del ser y realidad de vida, ed. Tecnos.
JAEGER, Werner. Paidéia, Ed. Martins Fontes.
KRISTELLER, Paul O. The Philosophy of Marsilio Ficino, Nueva York, 1943,
p.118
VOEGELIN, Eric. Platão e Aristóteles, ed. Loyola.
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